domingo, 28 de março de 2010

...PAI... 2009

a noite chegou incrédula... para sempre incrédula...
ungida numa mão que não era a tua.
a noite chegou incrédula... para sempre incrédula...
cegou, ignorou, cancelou, suspendeu, colheu.

a noite chegou ágil... para sempre ágil...
destemida numa mão que não era a tua.
a noite chegou ágil... para sempre ágil...
deselegante, estonteante, destemida, desvairada.


a noite chegou amaldiçoada... para sempre amaldiçoada...
impaciente numa mão que não era a tua.
a noite chegou amaldiçoada... para sempre amaldiçoada...
escolheu, derrotou,arrancou, levou, feriu

a ocasião assim o exigia...
tão simples como isso...

...PAI... 2010

Muito para além das grandes folhas de vencido papel

a interrupção no absurdo de outras paisagens,
nas tuas admiráveis e generosas mãos.

Muito para além da verosimilhança de falsas surpresas
A interrupção no sedimento de outras paredes,
para além do triplo do alcance das minhas mãos.


Interrogo o narrador:
aqui não há fuga, não há reparo, não há certeza.
O caminho tropeça no intervalo da contingência.


Muito para além das grandes folhas de vencido papel
o caminho desaparece no intervalo do outrora… da ausência…


Muito para além das grandes folhas de papel vencido
aperto-te, mas não te consigo apertar, em meus braços…

...prometeu perverso... 2009

Prometeu perverso' (a meio da sua vida, todos os vícios e virtudes -algures no mendigar entre o melhor e o pior do ser humano) cujas armas são a fonte ainda anónima, ainda adormecida e o machado vermelho já tingido pela ferrugem d0 sangue. Espreita as mulheres que saem dos túneis subterrâneos da cidade - são figuras mudas, não falam porque não têm memória - não passam testemunhos e não dão importância ao que lhes pode acontecer. As janelas das casas todas inclinadas para elas observam-nas de forma activa. Dois 'papiros' aparentemente sem importância, abandonados mas escondendo a descrição da existência de um grande império, estão ainda por decifrar e a que todos parecem indiferentes a não ser que a água comece de repente a correr. Dentro de um túnel um cântaro - simpatizante de paixões impossíveis:) inclinado para a fonte. Tudo esconde alguma coisa... ainda"

...traços gerais...

Voltava atrás para verificar se as luzes do seu carro estavam acesas, o sinal de aviso nunca tinha funcionado muito bem, aliás em nenhum dos seus carros e em nada da sua vida, mas pela primeira vez na vida estacionou o carro num lugar seguro e bem iluminado, a viagem iria ser longa.
No táxi e a caminho da estação o condutor reclamava-se um injustiçado cumpridor da lei, andava nesta vida há tanto tempo e nunca tinha visto nada assim!!! Gastou 200 contos a pintar o carro, fora o transtorno do tempo que esteve sem trabalhar, e agora uma nova lei já não o obrigava a tal. O governo faz leis para quem não existe, quem é que ganha para andar sempre a mudar o carro de cor? E só depois as corrige com nova lei! O pior de tudo é que a cor anterior era mais bonita e os clientes, cada vez mais exigentes, preferem a concorrência, quem é que se sente confortável num táxi desta cor?
Não se viam há muito tempo, esta era a alegria dos muitos reencontros.
- Evinha! Há quanto tempo!
Detestava que a tratassem por diminutivos, nunca se sentiu como tal, mas ainda não foi desta que o conseguiu repreender, e este não era o que mais lhe desagradava, pois também estava lá o seu nome.
Trinta anos, a ela não lhe estava a apetecer falar no que aconteceu nesses anos.
- Estás mais velha!
- Estás mais gordo!
- Deixei de fumar, lembras-te? Há trinta anos! Estava a ficar mais feio!
- Continuas o rapaz mais bonito que jamais conheci! - Afinal isso era importante para ele, admitia-o quando tentava minimizar essa característica, e apesar de ser verdade ela fez sempre questão de lho dizer.
Ambos lembraram a primeira e única vez que fizeram amor, não é que de uma história de amor se tratasse! Não tinha sido o sucesso que ele esperava, pelo hábito enraizado em todos os homens da sua geração! Nenhum dos dois percebeu muito bem aquela pequena noite, ela nunca quis encontrar uma explicação, acreditava que as coisas como estas se vivem apenas, e quando se explicam perdem a sua energia e influência para o futuro. Eva sempre soube lidar com o que aconteceu, apesar da distância e de nada ter percebido. Ele dizia estar a ser pela primeira vez infiel à namorada, ela ria como que de uma grande piada!
- Foste embora e não disseste nada!
- Era cedo para ti, meu querido, não te quis acordar! - Já não o chamava de amor! O tempo afinal passou pelas palavras!
- Li o teu livro daquele taxista que mudou a pintura do carro, fartei-me de rir, principalmente quando decidiu ir fazer ginástica para reduzir a barriga para os clientes se sentirem melhor no seu táxi! Casaste?
- Ainda hoje deve estar no mesmo café em que o deixei, medindo o tempo pelo acabar do seu cigarro, o resto do maço em cima da mesa, a carteira e o telemóvel. Ah! E penso que um copo de licor, sempre o mesmo copo, não gostava de beber, não sei se o copo lá estava, mas de qualquer modo compunha melhor o cenário.
Ela sempre lhe lá vira um copo mas agora apostava que não, ele tinha deixado de beber para lhe fazer a vontade, dizia ele! Estava a ficar com barriga e que o álcool diminuía o seu desempenho como companheiro. Nem o ousava fazer às escondidas, pois isso só mostrava o medo por ela e admiti-lo era pior para ele do que fazer de conta que tinha sido opção sua.
- Ainda hoje deve estar no mesmo café em que o deixei Olhando quem passa e parando o olhar numa rapariga mais atraente percorrendo a sua direcção enquanto estava ao alcance da sua vista, não com qualquer intenção mas pelo hábito enraizado em todos os homens da sua geração, nunca ousou trocar um olhar mais demorado com qualquer uma delas! Foi lá que o encontrei, naquela altura ainda acreditava que o conseguia tirar de lá! Passado pouco tempo achei que não tinha esse direito e comecei a passar por lá de vez em quando, cada vez menos. Num desses encontros fizemos um filho...
- Porque vieste embora?
- Ele zangou-se comigo, nunca o tinha ousado fazer! Tinha esquecido as luzes do carro acesas e a bateria avariou. - És sempre a mesma! Sempre no mundo da lua! Quando é que começas a ter atenção aonde pões os pés? - Eu não via esse tipo de importância no acontecimento. Acho que percebi que estava farto de mim, pois eu era assim mesmo! As luzes ficavam muitas vezes acesas e ele achou sempre piada, mas a bateria nunca tinha avariado! Eu acho que ele ficou logo zangado a décima terceira vez, mas nunca se apercebeu pois eu antecipava-lhe sempre um pedido de desculpas e um sorriso quase de chantagem – Deixei a luz do carro acesa! - Dizia. Quando queria dizer: - Não te vais zangar pois não?
No fundo já se percebia que era ele que a queria mudar, perdeu a paciência!

...rascunhos para uma doutrina... 2010

como entendemos o momento
suponho não haver necessidade de o provar.
soa-me que a conversa é clara
razoavelmente
acredita na razoabilidade do ancião


como entendemos as decisões invencíveis
voltemos à conversa sobre a cidade
soa-me que a conversa é clara
razoavelmente
acredita na razoabilidade da civilização

como entendemos a disciplina emocional
suponho que não podemos insistir nesse ponto
soa-me que a conversa é clara
razoavelmente
acredita na razoabilidade da situação


como entendemos a ciência social
suponho que temos de permitir a moral
soa-me que a conversa é clara
razoavelmente
acredita na razoabilidade do cidadão


como entendemos o impacto forjado
suponho ser suficiente invocar o nome
soa-me que a conversa é clara
razoavelmente
acredita na razoabilidade da condição

ana maria

...letras pobres... 1989

já tenho as unhas sujas
de tanto arranhar o passado
já tenho as unhas sujas
ao percorrer o esboço
fiquei por aí...


já tenho as botas rotas
de tanto andar para trás
já gastei as minhas botas
e não sujei a calçada
fiquei por aí...


já tenho as unhas tortas
há mil anos não as corto
tenho as lentes gastas
já não posso arrastar os pés
fiquei por aí


agora pensa comigo
já bem perto continuo
que entendes tu disto?
que vais fazer à saída?
ficar para aí?


não gosto dos panos pretos
que me tapam a visão


às vezes paro em frente
para trás está a minha roupa


levantei-me sem saber porquê
nem sei se lavei a cara
perdi o comboio
fiquei sentada na linha
fiquei por alí